Ingratidão previdenciária e benefício especial

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Ingratidão previdenciária e benefício especial

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Por Paulo Modesto

1) Enriquecimento sem causa previdenciário

A vedação ao enriquecimento sem causa, princípio geral do Direito, obsta o locupletamento injustificado à custa alheia. E, por sua abrangência, aplica-se aos domínios da Administração Pública, estando na base de aplicações como o pagamento por serviços efetivamente prestados em contratos administrativos nulos ou celebrados sem regular licitação, ausente prova de má-fé ou conluio do particular (STJ, AgRg no Ag 1056922/RS, Rel. Minº Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJ 11/3/2009), o ressarcimento de férias não gozadas ou licença-prêmio não usufruída em face da aposentadoria do agente público (STF,RE 721.001-RG, Rel. Minº Gilmar Mendes, Plenário Virtual, DJe 7/3/2013, Tema de Repercussão Geral 635) e o pagamento de saldo de vencimentos em casos de efetiva prestação de serviço sem regular e prévio concurso público (STF, AI 520556 AgR, Rel. Carlos Britto, Primeira Turma, j. 16/08/2005, DJ 09/12/2005), entre outros múltiplos empregos.

Esses exemplos deixam ver que o enriquecimento sem causa não pressupõe atos legítimos ou ilegítimos de qualquer das partes em relação, ou mesmo a má-fé do enriquecido (ou favorecido pelo enriquecimento), apenas o simples assentimento do sujeito favorecido pela prestação realizada pela contraparte e que o deslocamento patrimonial não encontre causa de justificação perante o direito.

Na relação previdenciária, a vedação ao enriquecimento injusto serve de fundamento para repetição de indébito ou devolução de contribuições previdenciárias posteriores ao implemento dos requisitos para a aposentadoria, quando protocolado pedido de aposentação originalmente indeferido pela Administração Pública (STJ, REsp 828.124/RS, Rel. Minº Francisco Falcão, Primeira Turma, julg. 07/11/2006, DJ 14/12/2006, p. 289), repetição de contribuição sobre a inatividade em período em que esta era indevida (STJ, REsp 1133815 – SP, Rel. Minº Castro Meira, Primeira Seção, julg. 09/12/2009, DJe 01/02/2010) ou para obrigar o pagamento pelo particular de valores recebidos por força de liminar posteriormente revogada (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 674.288/RS, Rel. Minº Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julg. 19/10/2017, DJe 30/10/2017).

Situação menos conhecida, mas de enorme relevância, é a compreendida pelo dever do Estado de ressarcir as contribuições previdenciárias vertidas pelos servidores efetivos em patamares superiores ao teto do regime geral de previdência social — RGPS (atualmente R$ 6.101,06), posteriormente sem contrapartida ou repercussão econômica no cálculo do benefício previdenciário público por força da adesão desses agentes ao regime de previdência complementar patrocinado pelo próprio poder público (RPC). Esse dever ressarcitório, que permite recompor a equidade no custeio previdenciário (artigo 194, §único, V, da CF), na União está expresso no §1° do artigo 3º da Lei nº 12.618, de 2012, e recebe o nome de “benefício especial”.

Trata-se, em verdade, de benefício estatutário de natureza compensatória, a cargo do poder público, e não da entidade de previdência complementar, pois traduz devolução diluída no tempo de valores vertidos a maior pelo servidor/contribuinte ao regime próprio de previdência social (RPPS). Por isso, não se cuida de benefício previdenciário ou vantagem remuneratória, mas indenização vinculada estreitamente à carreira contributiva individual do servidor e ao prejuízo patrimonial de sua efetiva contribuição excedente ao teto máximo do RGPS [1].

Embora o regime previdenciário público seja contributivo e solidário, sujeito passivo algum deve ser mais solidário do que outros em situação equivalenteou ter parcela de sua contribuição incorporada aos cofres públicos e simultaneamente afastada do cálculo de benefícios, sem que faça jus à devolução dos valores recolhidos à maior, porque o contrário denotará enriquecimento sem causa, deslocação patrimonial injusta, avaliável pecuniariamente e carente de causa legítima.

A previdência própria mantida pelos agentes públicos efetivos, em regime de repartição simples, constitui o único direito fundamental funcional exigente de contribuição individual específica. Há nele evidente caráter patrimonial, sendo cabível invocar o instituto da proibição do enriquecimento sem causa, quando desrespeitado o princípio constitucional da equidade no financiamento do custeio (artigo 194, V, da CF) e da contrapartida (artigo 195, §5º, da CF).

Trata-se de regime previdenciário de solidariedade intergeracional, pois autoriza que os participantes do sistema se beneficiem das contribuições dos que o integravam, mas que por qualquer motivo deixaram de nele se aposentar, ou faleceram antes de alcançar as condições de aposentadoria, sem assegurar a terceiros benefícios previdenciários, ou fizeram gozo de benefícios por pouco tempo. A solidariedade do sistema, no entanto, encontra limites. Não é possível admitir a quebra da igualdade e o enriquecimento sem causa do Estado com a simples invocação da lógica solidária do sistema.

O regime de repartição rege-se pelo princípio da solidariedade (CF, artigo 40, caput) e da equidade (CF, artigo 194, V). Dentro de uma mesma geração deve haver equidade no financiamento e contrapartida entre benefícios e encargos securitários (CF, artigo 195, §5º). Porém, ninguém deve ser obrigado a ser mais solidário do que os demais integrantes do sistema em situação equivalente (ver MODESTO, Paulo. Disposições constitucionais transitórias na reforma da previdência: proteção da confiança e proporcionalidade. Revista Brasileira de Direito Público — RBDP. Belo Horizonte, ano 15, nº 56, p. 9-54, janº/mar. 2017. Disponível em: http://bit.ly/reformaprevidenciatransicao. (Acesso em 8/9/2020).

Tendo presente essas coordenadas básicas, correto e preciso o entendimento do Supremo Tribunal Federal em considerar que “a dimensão contributiva do sistema é incompatível com a cobrança de contribuição previdenciária sem que se confira ao segurado qualquer benefício, efetivo ou potencial”. Além disso, que “não é possível invocar o princípio da solidariedade para inovar no tocante à regra que estabelece a base econômica do tributo” (STF, RE 593068/SC, Ementa).

No julgamento do RE 593068/SC, concluído em 11/10/2018, o Supremo Tribunal Federal fixou em repercussão geral a seguinte tese (Tema 163):

“Não incide contribuição previdenciária sobre verba não incorporável aos proventos de aposentadoria do servidor público, tais como ‘terço de férias’, ‘serviços extraordinários’, ‘adicional noturno’ e ‘adicional de insalubridade'”.

Na mesma assentada, explicitou o Supremo Tribunal Federal que “a leitura dos §§3º e 12 do artigo 40, c/c §11 do artigo 201 da CF, deixa claro que somente devem figurar como base de cálculo da contribuição previdenciária as remunerações/ganhos habituais que tenham ‘repercussão em benefícios’. Como consequência, ficam excluídas as verbas que não se incorporam à aposentadoria”. (STF, RE 593068/SC, Rel. Minº Roberto Barroso, Plenário, j. em 11/10/2018, DJE 22/03/2019 – Ata nº 34/2019. DJE nº 56, divulgado em 21/03/2019).

2) Benefício especial na União e nos Estados e a reforma da previdência

Na União, o benefício especial é devido exclusivamente ao servidor efetivo que optar pela migração do Regime Próprio da Previdência Social (RPPS) para o Regime de Previdência Complementar (RPC), tendo o seu montante calculado com base nas contribuições efetivamente recolhidas ao regime de previdência da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos municípios de que trata o artigo 40 da CF/1998, observada a sistemática estabelecida nos §§2º a 3º do artigo 3º da Lei nº 12.618, de abril de 2012, e o direito à compensação financeira de que trata o §9º do artigo 201 da CF/1998. É dizer: o benefício especial (que a rigor é benefício ressarcitório) corresponderá a um valor proporcional ao tempo de contribuição e à remuneração utilizada como base de contribuição do agente no período anterior à migração de regime

Esse cálculo é feito em duas etapas. Na primeira, apura-se a diferença entre a média aritmética simples das maiores remunerações anteriores à data de mudança do regime, utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes próprios de previdência, atualizadas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), correspondentes a 80% de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994 (data do Plano Real) ou desde a do início da contribuição, se posterior àquela competência, e o patamar máximo de contribuição do regime geral de previdência social.

Encontrada a diferença atualizada das bases de contribuição (base de cálculo), aplica-se o fator de conversão, que será, no máximo, igual à unidade. O fator é encontrado a partir da razão entre a quantidade de contribuições mensais vertidas ao RPPS até a data da opção pelo servidor (TC = tempo de contribuição), dividida pelo tempo total de contribuição (TT), isto é, por 455 (35 anos vezes 13 meses), se homem, ou 390 (30 anos vezes 13 meses), se mulher. Para professores de ensino infantil, fundamental ou médio, aplica-se a mesma sistemática, considerando, respectivamente, para homens ou mulheres, 30 ou 25 anos (390 ou 325, respectivamente). Em termos formalizados, a equação é simples: benefício especial = (média – teto do RGPS) x TC/TT. Se um servidor masculino, não professor, por exemplo, verteu para o RPPS contribuições a maior durante quinze anos (15 x 13 = 195) antes de aderir ao RPC, o fator de conversão será 195/455 = 0,4285. Se a diferença entre a sua base de contribuição e o limite do RPPS for R$ 10 mil reais, em valores atualizados, o seu benefício especial será aproximadamente de R$ 4.285, sendo atualizado pelo mesmo índice de correção do RGPS. Esses valores serão pagos apenas quando da concessão da aposentadoria ou pensão pelo RPPS, diretamente por este, não havendo previsão de pagamento do benefício quando o agente optar por exonerar-se do serviço público e pleitear aposentadoria pelo RGPS [2].

Esse modelo de transição econômica entre regimes previdenciários, com compensação dos valores recolhidos a maior ao regime próprio, é previsto expressamente na União e em diversos Estados da federação (v.g. Rio Grande do Sul, Piauí, Goiás). No entanto, há Estados omissos, com previdência complementar instituída e operante, mas que não disciplinaram o ressarcimento previdenciário das contribuições realizadas a maior — e sem repercussão retributiva — nos regimes próprios de previdência para os servidores que aderiram a planos de previdência complementar patrocinados pelos entes federados (lamentavelmente, a Bahia é um dessas unidades omissas).

Essa lacuna de regulação traduz-se em proteção insuficiente a direito fundamental (infração à igualdade previdenciária, à propriedade e a igual proteção previdenciária de agentes públicos), promove enriquecimento sem causa do Estado e, para alguns, modalidade de confisco.

Penso, entretanto, que com a Emenda Constitucional 103/2019 a prova da ilegitimidade constitucional dessa omissão parcial — por proteção insuficiente — tem a sua demonstração facilitada por texto expresso da própria emenda, a tornar hoje incontornável a previsão em todas as unidades políticas do benefício especial, não sendo admissível a recusa da proteção por ausência expressa de suporte normativo para o ressarcimento das contribuições pagas a maior. É a reflexão que faço conjugando as considerações anteriores com as disposições previstas no artigo 34, II e III, da Emenda Constitucional 103, de 12/11/2019.

Prescreve o artigo 34 da Emenda 103/2019:

“Artigo 34 — Na hipótese de extinção por lei de regime previdenciário e migração dos respectivos segurados para o Regime Geral de Previdência Social, serão observados, até que lei federal disponha sobre a matéria, os seguintes requisitos pelo ente federativo:

I — Assunção integral da responsabilidade pelo pagamento dos benefícios concedidos durante a vigência do regime extinto, bem como daqueles cujos requisitos já tenham sido implementados antes da sua extinção;

II — Previsão de mecanismo de ressarcimento ou de complementação de benefícios aos que tenham contribuído acima do limite máximo do Regime Geral de Previdência Social;

III — Vinculação das reservas existentes no momento da extinção, exclusivamente:

a) ao pagamento dos benefícios concedidos e a conceder, ao ressarcimento de contribuições ou à complementação de benefícios, na forma dos incisos I e II; e

b) à compensação financeira com o Regime Geral de Previdência Social.

Parágrafo único. A existência de superavit atuarial não constitui óbice à extinção de regime próprio de previdência social e à consequente migração para o Regime Geral de Previdência Social”.

Ora, se a extinção do regime próprio estadual ou municipal foi disciplinada em termos a exigir, sempre e obrigatoriamente, a previsão de “mecanismo de ressarcimento ou de complementação de benefícios aos que tenham contribuído acima do limite máximo do Regime Geral de Previdência Social”, modo de evitar o enriquecimento sem causa do poder público, a fortiori não parece legítimo que esse mesmo poder público, ao instituir a previdência complementar, absorva sem restituição as contribuições realizadas acima do limite máximo do regime geral de previdência social, recusando ao agente público optante a previsão do “benefício especial” (ou benefício ressarcitório). Seria arrematada contradição que o servidor estivesse mais bem protegido com a extinção do regime próprio de previdência social do que com a continuidade do regime que ajudou a financiar.

A ausência de previsão expressa do benefício ressarcitório, presente a compulsoriedade da instituição de previdência complementar em todo o país, diante das previsões destacadas, traduz situação de verdadeira negligência em face de direitos fundamentais dos agentes públicos locais. Não deixa de ser paradoxal que esse servidor estadual ou municipal lesado, acaso migre para outro Estado ou para a União, e nessa nova unidade opte pela previdência complementar, tenha ressarcido sob forma de benefício especial todo o período contribuído na previdência de sua administração de origem, e o Estado de origem a obrigação de compensar o estado de destino por todas as contribuições vertidas. Será preciso sair do Estado, migrar para outro cargo público, ou esperar a extinção do regime de origem, para receber o ressarcimento dos valores pagos acima do patamar do regime geral da previdência social no regime próprio? A teratologia das situações descritas demonstra a iniquidade manifesta da omissão normativa lesiva.

No cenário normativo atual, diante do exposto, incide em inconstitucionalidade por omissão parcial o Estado ou o município que institua regime de previdência complementar sem a previsão de benefício ressarcitório (benefício especial) para compensação dos servidores efetivos optantes. Tal omissão traduz verdadeira “ingratidão previdenciária”, lacuna imoral e antijurídica estatal frente aos que reservaram parte de seu patrimônio atual para um seguro previdenciário, restringindo o consumo presente em favor de um benefício futuro, em patamar contributivo elevado para manter o sistema em atividade e assegurar a solvabilidade do plano de custeio.

Trata-se de ingratidão previdenciária que não deve ser tolerada ou admitida, sob pena do servidor público sentir-se como o personagem anônimo inserido nas teias iniciais dos “Versos Íntimos”, herança imortal de Augusto dos Anjos:

“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão — esta pantera —
Foi tua companheira inseparável!”.

[1] Sobre esse entendimento, imprescindível a leitura dos pareceres: Parecer na Solução de Consulta nº 42 – Cosit, de 14/02/2019, da Coordenação Geral de Tributação do Ministério da Fazenda e, sobretudo, Parecer nº JL 03, de 18/05/ 2020, do Advogado-Geral da União, que adotou, nos termos estabelecidos no Despacho do Consultor-Geral da União nº 00043/2020/GAB/CGU/AGU, no Despacho nº 00036/2020/DECOR/CGU/AGU e no Despacho nº 815/2019/DECOR/CGU/AGU, o Parecer nº 00100/2019/DECOR/CGU/AGU da Consultoria-Geral da União. O Parecer JL03 contou com despacho de aprovação do Presidente da República, publicado no DOU 27/05/2020, nº 100, Seção: 1, p. 118, possuindo efeito vinculante para toda a Administração Federal.

[2] Essa limitação é considerada inconstitucional por Fabio Zambitte Ibrahim, por violação direta ao Artigo 202 da Constituição Federal, que prevê a autonomia da previdência complementar frente aos regimes básicos, sendo certo que a própria legislação infraconstitucional específica regula o benefício proporcional diferido e o autopatrocínio, situações típicas de pessoas que se desligam do patrocinador (cf. IBRAHIM, Fábio Zambitte. A Previdência Complementar dos Servidores Públicos Federais – aspectos controvertidos, in: SERAU JR, Marco; FRLMANN, Mellissa (org). Previdência Social: em busca da justiça socail – homenagem ao Professor Dr. José Antonio Savaris. São Paulo: LTR, 2015, p. 239.

Paulo Modesto é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de setembro de 2020.